São quatro da manhã e venho arrepiado. Não vou conseguir dormir, tenho de vir escrever. Acabei de ver o documentário "The Story of The Kop", que comprei por 50 pences numa feira de domingo, onde se vendia por preços ridículos coisas que as pessoas já não queriam. Saíu-me a sorte grande. O The Kop recebe o nome devido à batalha de Spion Kop (vejam a foto do post antes deste), na África do Sul, onde morre todo um regimento de habitantes de Liverpool. O clube presta-lhes a homenagem e em 1906 nasce essa bancada onde toda a gente está em pé. E a cantar.
Desde as canções dos Beatles (e ver a bancada toda a cantar she loves you, yeah, yeah, yeah... é mais que arrepiante) à lendária You`ll Never Walk Alone, passando por jogos míticos (como a reviravolta de 0-2 para 3-2 contra os eternos rivais do Everton em 1970. O terceiro golo é capaz de ser um dos grandes responsáveis por eu ter que escrever isto tão tarde e a más horas: o público canta Liverpool! Liverpool! para a bancada calada visitante. Os braços no ar e as bandeiras e estamos em 1970. A bancada ferve em fé. Depois, abafando a voz do comentador, começamos a ouvir aquele walk on! walk on! longo e cantado lá do fundo. Não há berros desafinados na canção, não há ninguém a trocar-se. A bancada entra em êxtase. E no and you`ll never walk...há a paragem de respiração. A bola na área e o público em bicos de pés. 3-2. E vindo de há 36 anos atrás, um imenso YEEEEEEEEEEEESSSSSSSSSSSSS!!! entrou na sala, arrepiou-me e lembrou-me porque é que este jogo é mágico, mágico, mágico...)
O documentário conta verdadeiros contos de fadas. Como o do jogador do Norwich que admite a um do Liverpool que odeia lá ir. Do pedido de apoio de Paisley que faz com que um péssimo início de campeonato acabe com o mesmo no bolso, até ao 3-2 em casa ao Saint Ettiéne, que dá a passagem à meia final da Taça dos Campeões Europeus com uma descrição maravilhosa do 3º golo, segundo um adepto que estava no The Kop. O grande final, o último jogo do The Kop, em 1994, é uma delícia imprescendível para quem vive o mundo das bancadas. Desde as velhas glórias com o cachecol aberto a cantar o YNWA(que haviam sido Kopites, como Johnson, que dizia saber tão exactamente onde estava o seu irmão no The Kop, que lhe acenava quando entrava em campo) ao agradecimento final From all the players: thank you, we will never walk alone.
50 pences por um vídeo histórico. Vemos pessoas na bancada vazia a contarem as suas histórias, a falarem do seu sítio na bancada (e todos nós sabemos que isso é tão único como o sítio onde se começa a namorar, o sítio onde nos sentávamos na primária..) e das suas memórias. Naquele último jogo, olha-se para os olhos das pessoas e vê-se que se tentava absorver tudo e festejar a imensa festa daquela bancada onde o sentido de humor e a lealdade imperavam.
Acho que há sítios que não podiam ir abaixo. Há coisas que estão acima das regras (e o The Kop sucumbe face a regras de segurança, mas nem isso me faz recuar). Há homens e mulheres a quem se deve tanto que se permitem todas as asneiras, há dias que são tão especiais que não há nada que os estrague and so on nos lugares comuns.
O que me apetece dizer - mas não encontro palavras que não façam isto parecer uma lamechice pegada - é que sítios como o The Kop, onde a proximidade física torna o mar de cachecóis mais impressionante, fazem-me sentir que faço mesmo parte de alguma coisa superior por fazer parte da tribo da bola. Irrita-me o lado religioso disto, mas é isso mesmo que sinto. O The Kop fez-me sentir que também eu, na minha loucura pelo jogo, nunca caminharei sozinho.
Walk on.