Wednesday, September 26, 2007

O AC Milan e George Smiley

Regressado das minhas viagens, escrevo-vos depois de tanta água ter passado debaixo da ponte. Lamento, mas não me apetece comentar o estado actual do Benfica pormenorizadamente até porque este se resume bem: Vieira errou ao dar tempo a Fernando Santos de destruir mais pré-época e foi um cúmplice brutal no assassinato da mesma ao não ter tido a coragem de dizer imediatamente: "Não se conte com Simão e Manuel Fernandes". O resultado é óbvio: não há milagres. Vamos começar já a dar o campeonato e vamos torcer para nos endireitarmos a tempo de lutar por qualquer coisa.
Entretanto, neste mês a viajar, alternei os passeios e os jogos do Benfica com a companhia dos livros de John Le Carré e da sua exemplar personagem, o espião George Smiley. Para quem gosta de ler, e para quem gosta de policiais, recomendo vivamente. Le Carré é um génio dos enredos e Smiley é uma personagem que merece a pena ser lida. Enquanto assistia ao AC Milan - Benfica, algumas semanas depois de ter trocado uns mails com o meu pai acerca do AC Milan - Sevilla, não pude deixar de começar a fazer paralelismos elogiosos entre os rossoneri e o espião britânico.
Passo a explicar, Smiley é o anti - herói. A antítese pura e dura de James Bond. Smiley é gordo, baixo, usa óculos, não tem sentido de humor, está sempre a suar. Quando olhamos para o Milan, é a mesma coisa. Pronto, há craques como Kaká, mas parece possível aguentá-los. À primeira vista não há extremos, o ponta de lança não é particularmente alto e forte e tudo parece ser lento (quase nos atrevemos a dizer: previsível). A defesa só tem velhotes. Afinal, quantos de nós sonhamos com Ambrosini como reforço? Não tem muita técnica, não é rápido, não chuta muito bem... O Milan, penso ser esta a sua principal artimanha, dá-nos a impressão de ser humano.
Nos livros de Le Carré há também uma série dificuldade em definir as qualidades de Smiley (apesar dos elogios dos outros solitários espiões que dizem sempre "Smiley é o melhor"). O sujeito parece incapaz de lutar e, para cúmulo, a mulher é-lhe tão infiel que é de domínio público. Mas, como o AC Milan, tem uma memória fabulosa. Joga de cor e salteado. E, como os jogadores do AC Milan, não procura protagonismo, não tem aspirações a medalhas, joga para algo maior.
Qualquer equipa se deixaria emocionar pelo drama de Puerta e pela primeira parte fabulosa do Sevilla. Com 1-0 no marcador e o rótulo de heróis nos sevillistas, perguntei-me, durante o jogo, como poderia o Milan, com Kaká controlado, desequilibrar. Mas, como em Munique o ano passado, o Milan não teve pressa. Como Smiley, sabe que é preciso primeiro dar corda ao relógio e só quando a equipa adversária se acalmar (é incrível, mas mais cedo ou mais tarde, todas as equipas caem nessa ilusão) é tempo de abanar a árvore para colher o fruto. Sem pressa, sem barulho, sem os gadgets do 007. Sem golear. Sempre com um ar sonso e vulnerável.
Fiquei absorto nessa final e no banho de bola que nos deram. Foram simpáticos, lembraram-se certamente que Rui foi um deles e que meter cinco era chato para as nossas contas finais no grupo. São os meninos que limparam duas Champions em cinco anos e só por uma vez não chegaram às meias finais. Os elogios não são unânimes como foram para o Barça de Ronaldinho. Smiley também sofre para convencer os americanos (terna e cinicamente tratados como os primos) que é preciso colocar Jerry Westerby, o venerável espião, no terreno.
Para quem gosta de policiais e de futebol é obrigatório ver este Milan e ler John Le Carré. A suprema ironia de ver Ambrosini, esse soldado desconhecido, a levantar uma taça europeia como se fosse só mais um dia na sua vida, faz-me lembrar o toque britânico de Le Carré, como se ele e o Milan conseguissem sempre passar por amantes ingénuos e sentimentais.


Outros interrogadores, diz Toby, teriam concedido a Grigoriev uma alternativam dando-lhe a possibilidade de recuperar a obstinação russa que nele existia e o pendor russo para a auto-destruição; esses mesmos impulsos, segundo ele, que atrairiam a catástrofe. Outros interrogadores, insiste ele, que atrairiam a catástrofe. Outros interrogadores, insiste ele, teriam proferido ameaças, levantado a voz, recorrido a gestos histriónicos, aos maus tratos até. Mas George não, diz ele, nunca. George representou o papel do discreto e zeloso funcionário e Grigoriev, como todos os Grigorievs do mundo aceitou-o como destino inalterável. George obviou completamente a alternativa, diz Toby.

Smiley`s People - John Le Carré