Dia Mau
Este texto é o segundo de uma série de três sobre claques, futebol e todas aquelas coisas que em horas a pensar nisto acabam por aparecer. Começo pelo segundo pelo motivo estúpido de não encontrar o primeiro. O seguimento normal seria Dia Normal / Dia Mau / Dia Bom. Mas não encontro mesmo o primeiro.
Espero que gostem.
“Eu sei, A tua vida foi, Marcada pela dor de não saber aonde dói, Mas vê bem: Não houve à luz do dia, Quem não tenha provado, O travo amargo da melancolia”
Manuel Cruz, Ornatos Violeta – “Dia Mau”, no albúm “O Monstro Precisa de Amigos”
Chove a potes e o céu está negro feio. Que merda. Os azuis, do outro lado, exultam e cantam. Filhos de uma grande puta, odeio-os.
Para cúmulo, o Deco, na linha de canto, goza o Petit com requintes de malvadez, fintando-o três vezes. Parece aqueles pais a andar com a bola à volta dos filhos enquanto estes à correm em círculos, qual cão à procura da cauda. Que deprimente.
Somos uns mil na bancada do sector visitante do antigo Estádio das Antas contra todo o restante público. Um estádio que nos odeia, que nos insulta, que canta “olés” para humilhar. Um estádio que está em orgasmo desde o 2 – 1 deles (golo do Deco, depois de se atirar para o chão mesmo à nossa frente. Em vez de ir ele para a rua com um (justo) segundo cartão amarelo, foi o Éder, nosso defesa direito que até fez o 1 – 1 na própria baliza.), golo esse em que vi velhotes a atirarem-se para as redes que nos rodeiam lateralmente praguejando coisas indecifráveis no meio de tanto ódio e perdigotos, ao mesmo tempo que o Deco nos mostrou o dedo do meio (facto que, segundo Benfiquistas que tiveram a inteligência de ficar em casa, não apareceu na TV). Ainda se tenta cantar, mas no meio de mil pessoas, talvez estejam uns vinte pares de braços no ar e uma bandeira tímida e encharcada a esvoaçar, derrotada. No nosso sector, parece que chove mais.
Depois de uma chegada ao estádio…"quentinha”, de sobrevivermos a todos os abusos policiais, resta-nos aguardar que o jogo acabe (estamos com menos um, além da desvantagem no marcador, portanto não há grandes esperanças que a coisa possa dar a volta), que eles cantem mais um bocado contra nós (hoje já ouvi três mil vezes a versão insultuosa do Glorioso SLB e o “Nós só queremos Lisboa a arder”, portanto acho que estou dessensibilizado e preparado), esperar pacientemente uma hora no estádio (à chuva…) e fazer as horas de comboio até Lisboa. “É só mais um dia mau…” - cantaria o Manuel Cruz.
E enquanto estamos sozinhos no estádio, já ensopados, a pensar em torturas ao árbitro, ocorre-me que só ali estou porque quero. E se eu quero ali estar é porque gosto daquilo. E se assim é, algo de grave se passa em mim.
Na altura – quem percebe de futebol sabe que isto não foi ontem – não cheguei a qualquer conclusão e limitei-me a apanhar uma grande molha, mas hoje acho – acho! – que já percebi:
A minha lógica filosófica não acredita no hedonismo puro como forma de vida. Acredito que os grandes momentos de prazer só são possíveis quando intercalados com momentos de sofrimento. Chegando a esta conclusão, impõe-se rapidamente a pergunta: então devemos submeter-nos ao rodopio dos grandes prazeres e grandes sofrimentos, ou devemos ser estóicos? O problema é que, no futebol, não há esta discussão. O estoicismo é uma miragem.
Aquele jogo e aquelas horas foram uma dor atroz. Ver os azuis todos aos saltos, a cantarem e a gozarem o meu clube, sentir os nossos onze jogadores pequenos, lentos, impotentes face aos adversários foi uma angústia torturante. Eu sei que isto parece parvo, mas experimentem ouvir quarenta mil pessoas (salvo erro) a insultarem uma coisa de que vocês gostem mesmo. Tentem sonhar semanas com uma vitória num estádio que não nos aparecia desde 1991, chegar ao mesmo e ver uma vantagem de 0-1 fugir-nos sem que possamos fazer nada. Mais cruel ainda: tentem cantar e não conseguir ouvir a vossa voz, porque do outro lado eles são mais e têm nas gargantas a genica de quem tem o resultado a favor. Acreditem em mim: é duro.
Nesse dia sofri muitíssimo. Foi das metáforas máximas de dez anos horríveis (ocorrem-me mais uns jogos, mas já custa muito escrever sobre um). E hoje, com mais de três anos sobre esse jogo, percebo que tudo aquilo foi necessário. Que me tornei mais adepto e mais Benfiquista por ter lá estado.
Perder faz parte da vida, mas infelizmente faz ainda mais parte do futebol. E quando está em nosso jogo a nossa camisola, o nosso símbolo (por muito medieval que isto pareça, isto é mesmo muito…) tudo parece pior. A questão é que se na vida há a hipótese de sermos como Ricardo Reis, no futebol não. Nós, os fanáticos, temos que nos submeter à montanha russa e à vertigem de se estar sempre presente, seja neste dia como no do fim de semana seguinte ou no do anterior. Para nós não há estoicismo nem racionalizações. Estamos sempre lá, na linha da frente, no limbo entre estar agarrados à rede a festejar com um dos nossos jogadores ou a ver o dedo do meio do Deco subir devagarinho enquanto o restante estádio insulta as nossas Mães.
Partindo do inquestionável princípio que nasci Benfiquista, estou há vinte e um anos sujeito a isto. É certo que a chuva, o preço dos bilhetes e as horas de viagem para acompanhar a equipa só surgiram mais tarde (tendo agravado bastante a questão), mas vocês não imaginam o que isto é. Quando o Benfica foi Campeão choveram-me telefonemas como se eu fosse jogador. Quando perdemos ou empatamos eu sou a pessoa mais massacrada do meu ano. Tudo porque nunca tive a opção de escolher a estabilidade emocional (clubística).
Portanto antes de gozarem os adeptos de futebol por serem “rudes e alienados”, lembrem-se que nós temos menos opções filosóficas do que na vida real. E talvez aí tenham noção da magia e tragédia do jogo.
“Football is not a matter of life or death. It`s more important.” Bobby Robson
Espero que gostem.
“Eu sei, A tua vida foi, Marcada pela dor de não saber aonde dói, Mas vê bem: Não houve à luz do dia, Quem não tenha provado, O travo amargo da melancolia”
Manuel Cruz, Ornatos Violeta – “Dia Mau”, no albúm “O Monstro Precisa de Amigos”
Chove a potes e o céu está negro feio. Que merda. Os azuis, do outro lado, exultam e cantam. Filhos de uma grande puta, odeio-os.
Para cúmulo, o Deco, na linha de canto, goza o Petit com requintes de malvadez, fintando-o três vezes. Parece aqueles pais a andar com a bola à volta dos filhos enquanto estes à correm em círculos, qual cão à procura da cauda. Que deprimente.
Somos uns mil na bancada do sector visitante do antigo Estádio das Antas contra todo o restante público. Um estádio que nos odeia, que nos insulta, que canta “olés” para humilhar. Um estádio que está em orgasmo desde o 2 – 1 deles (golo do Deco, depois de se atirar para o chão mesmo à nossa frente. Em vez de ir ele para a rua com um (justo) segundo cartão amarelo, foi o Éder, nosso defesa direito que até fez o 1 – 1 na própria baliza.), golo esse em que vi velhotes a atirarem-se para as redes que nos rodeiam lateralmente praguejando coisas indecifráveis no meio de tanto ódio e perdigotos, ao mesmo tempo que o Deco nos mostrou o dedo do meio (facto que, segundo Benfiquistas que tiveram a inteligência de ficar em casa, não apareceu na TV). Ainda se tenta cantar, mas no meio de mil pessoas, talvez estejam uns vinte pares de braços no ar e uma bandeira tímida e encharcada a esvoaçar, derrotada. No nosso sector, parece que chove mais.
Depois de uma chegada ao estádio…"quentinha”, de sobrevivermos a todos os abusos policiais, resta-nos aguardar que o jogo acabe (estamos com menos um, além da desvantagem no marcador, portanto não há grandes esperanças que a coisa possa dar a volta), que eles cantem mais um bocado contra nós (hoje já ouvi três mil vezes a versão insultuosa do Glorioso SLB e o “Nós só queremos Lisboa a arder”, portanto acho que estou dessensibilizado e preparado), esperar pacientemente uma hora no estádio (à chuva…) e fazer as horas de comboio até Lisboa. “É só mais um dia mau…” - cantaria o Manuel Cruz.
E enquanto estamos sozinhos no estádio, já ensopados, a pensar em torturas ao árbitro, ocorre-me que só ali estou porque quero. E se eu quero ali estar é porque gosto daquilo. E se assim é, algo de grave se passa em mim.
Na altura – quem percebe de futebol sabe que isto não foi ontem – não cheguei a qualquer conclusão e limitei-me a apanhar uma grande molha, mas hoje acho – acho! – que já percebi:
A minha lógica filosófica não acredita no hedonismo puro como forma de vida. Acredito que os grandes momentos de prazer só são possíveis quando intercalados com momentos de sofrimento. Chegando a esta conclusão, impõe-se rapidamente a pergunta: então devemos submeter-nos ao rodopio dos grandes prazeres e grandes sofrimentos, ou devemos ser estóicos? O problema é que, no futebol, não há esta discussão. O estoicismo é uma miragem.
Aquele jogo e aquelas horas foram uma dor atroz. Ver os azuis todos aos saltos, a cantarem e a gozarem o meu clube, sentir os nossos onze jogadores pequenos, lentos, impotentes face aos adversários foi uma angústia torturante. Eu sei que isto parece parvo, mas experimentem ouvir quarenta mil pessoas (salvo erro) a insultarem uma coisa de que vocês gostem mesmo. Tentem sonhar semanas com uma vitória num estádio que não nos aparecia desde 1991, chegar ao mesmo e ver uma vantagem de 0-1 fugir-nos sem que possamos fazer nada. Mais cruel ainda: tentem cantar e não conseguir ouvir a vossa voz, porque do outro lado eles são mais e têm nas gargantas a genica de quem tem o resultado a favor. Acreditem em mim: é duro.
Nesse dia sofri muitíssimo. Foi das metáforas máximas de dez anos horríveis (ocorrem-me mais uns jogos, mas já custa muito escrever sobre um). E hoje, com mais de três anos sobre esse jogo, percebo que tudo aquilo foi necessário. Que me tornei mais adepto e mais Benfiquista por ter lá estado.
Perder faz parte da vida, mas infelizmente faz ainda mais parte do futebol. E quando está em nosso jogo a nossa camisola, o nosso símbolo (por muito medieval que isto pareça, isto é mesmo muito…) tudo parece pior. A questão é que se na vida há a hipótese de sermos como Ricardo Reis, no futebol não. Nós, os fanáticos, temos que nos submeter à montanha russa e à vertigem de se estar sempre presente, seja neste dia como no do fim de semana seguinte ou no do anterior. Para nós não há estoicismo nem racionalizações. Estamos sempre lá, na linha da frente, no limbo entre estar agarrados à rede a festejar com um dos nossos jogadores ou a ver o dedo do meio do Deco subir devagarinho enquanto o restante estádio insulta as nossas Mães.
Partindo do inquestionável princípio que nasci Benfiquista, estou há vinte e um anos sujeito a isto. É certo que a chuva, o preço dos bilhetes e as horas de viagem para acompanhar a equipa só surgiram mais tarde (tendo agravado bastante a questão), mas vocês não imaginam o que isto é. Quando o Benfica foi Campeão choveram-me telefonemas como se eu fosse jogador. Quando perdemos ou empatamos eu sou a pessoa mais massacrada do meu ano. Tudo porque nunca tive a opção de escolher a estabilidade emocional (clubística).
Portanto antes de gozarem os adeptos de futebol por serem “rudes e alienados”, lembrem-se que nós temos menos opções filosóficas do que na vida real. E talvez aí tenham noção da magia e tragédia do jogo.
“Football is not a matter of life or death. It`s more important.” Bobby Robson
14 Comments:
Grande texto! Aliás, já tinha saudades de um assim...
Ler sobre as tuas viagens a Roma ou Valencia, ou ver fotos antigas do Benfica é giro; mas são estes textos que fazem com que eu goste mesmo deste blog e acabe a pensar assim "este gajo devia escrever um livro" :-)
Eu diria antes: "Este gajo vai escrever um livro". É só uma questão de tempo.
Excelente, para não variar. Abre o apetite para o resto desta trilogia, em especial para o "Dia Bom"...
Fantástico !!!!
This comment has been removed by the author.
Já tinha saudades de ver um texto destes!
excelente mais uma vez! :)
parabéns pelo texto,pela descrição de "um dia mau"...mas o k mais m impressionou foi k tu descrevest ao pormenor todos os sentimentos e estados de espírito desse dia...eu estive lá e revi-me exactamente nas tuas palavras!!!um abraço...
Obrigado, grande post.
Fico 'a espera do resto.
Excelente texto pois quem me dera escrever tão bem como tu ( acredita nao tenho qualquer tipo de paciencia nem sei escrever talvez porque apenas leio aBola e o Record :] )
Lembro me perfeitamente desse jogo é muito mais ! ( nao vi o gesto do deco que fiquei tão fdd tão fdd que me sentei desesperado a pensar nas horas de viagem que me faltavam pela frente. ) então nao é que tivemos uma recepção calorosa á entrada da estação de espinho ? E os vasos que as velhas atiravam para nós ?e as idas ao campo do salgueiros ? Pois é ... hoje em da está tudo controlado e protegido .... é bom ou mau ? perdeu-se secalhar muitas dessas histórias.... mas se calhar ganhou-e a nivel de segurança...
Pois bem na altura dos 0-2 do nuno gomes no dragãoa unica pessoa que viu o benfica ganhar ao porto "lá" foi o Nuno precisamente.... Foi uma festa tremenda, lembrei me de todos os golos que tinhamos sofrido nas antas e todos esses momentos maus que nós lá passamos...
tenho pena de nao teres referido aquilo que sentiste no nosso golo se calhar contrastava mais com aquilo que tens escrito !
um grande abraço !
Bobby Robson? Quem lhe dera.
Quem disse isso foi o Shankly e a frase correcta é: Some people believe football is a matter of life and death. I’m very disappointed with that attitude. I can assure you it is much, much more important than that.
Lembro-me vagamente desse dia.
Lembro-me que quando o sr. Deco marcou esse golo e veio festejar junto de nós em tom de provocaçao, rebentou um petardo mesmo junto à sua delicada patiha.
Penso k nunca mais o irá fazer.
Lembro-me tb do fim do jogo em k ficámos k nem uns pintos à chuva, e, coincidencia ou nao, só qd o mourinho estava a dar uma entrevista lá por cima e nós demos por isso e começámos "oh mourinho vai pro c*****o, é k a monaria nos deu permissao de saida dakele penico azul.
Sao viagens dificeis como essas k nos fazem ve a nós proprios o k andamos ali a fazer, o pq de sermos BENFICA !!
Abraço
SLB92
Fabuloso o texto
adicionem ssf:
http://blogslbenfica.blogspot.com/
Quanto a esse jogo em particular,se já pela televisão sofri como poucos,imagino ao vivo...
Aliás,nos derbys na Luz não posso nem ver aqueles energúmenos a espalhados pelas bancadas.
Mas temos que ver o ódio deles é proporcional á nossa grandeza e á sua pequenez,só temos é que voltar a demonstrar issso em campo.
Saudações Benfiquistas
Post a Comment
<< Home